"O livre comércio está fundado na ideia de que regras e regulamentos devem ser os mesmos em todo lugar, para que se possa chegar a uma competição "pura e perfeita" na maior medida possível, que permite à "mão invisível" exercer sua influência em todo mercado. No jargão dos economistas, seu ideal é o "campo de jogo nivelado" livre de tudo que possa representar um obstáculo ao livre jogo do mercado: fronteiras, controles, regulações, tarifas alfandegárias, etc. Desde essa perspectiva, o problema não é o comércio internacional, que está devotado a se estender indefinidamente, mas a "rigidez" de salários e regulações trabalhistas, consideradas como limitadoras da competitividade de países desenvolvidos. Quanto às regras iguais para todos, o objectivo do livre comércio é finalmente a abolição de todas as regulações, de tudo que poderia impedir a expansão planetária da lógica do crédito e do lucro. O livre comércio é, em última análise, nada além da liberdade absoluta do capital e de sua capacidade de controlar o mundo, sem se submeter a qualquer regra.
A ideia geral é a de que o comércio internacional representa a principal força de impulso do crescimento económico, e que, portanto, nós veremos mais crescimento quanto mais suprimamos completamente tudo que possa atrapalhar o comércio. Isso se traduz na realidade em uma pressa para exportar. Os estudos relativos à correlação entre o grau de abertura económica e taxas de crescimento, porém, não confirmam essa ideia. Eles mostram, ao contrário, que o livre comércio não resulta necessariamente em uma equalização de preços por todo o tabuleiro; mas ao contrário, que ele beneficia certos países (geralmente os mais ricos), que ele também prejudica seriamente outros, pois ele induz distorções profundamente destrutivas entre países dotados de diferentes sistemas sócio-produtivos, porque o ajuste entre oferta e demanda não acontece na mesma velocidade em todo lugar.
Os economistas, cegos por sua adesão aos dogmas do liberalismo económico, na verdade são incapazes de pensar na dimensão colectiva, nas entidades nacionais ou continentais, ou no fenómeno da influência e do poder que sempre entram no caminho da competição "pura e perfeita". Eles também se recusam a admitir que não é o consumo (demanda) que é o objectivo do crescimento económico (oferta), mas o crescimento económico que é o fruto do consumo. Ademais, eles não vêem que o sistema de oferta e demanda, que supostamente deveria se
auto-ajustar espontaneamente, no máximo é capaz de satisfazer a demanda solvente, que diminui rapidamente. Eles imaginam que a liberalização ou desregulação total do comércio permitirá a todos os participantes se beneficiarem igualmente de suas relações comerciais, quando, na verdade, as desigualdades económicas só se tornarão cada vez piores, tanto entre países como dentro deles. O princípio da competição "livre e sem distorções" é uma contradição em termos: toda competição "livre" é necessariamente distorcida, e toda competição sem distorções não é mais "livre".
O vencedor do Nobel Maurice Allais relembrou isso há bastante tempo, afirmando em 1988: "Uma liberalização de todas as trocas e movimentos de capital é possível e desejável apenas dentro do escopo de grupos regionais unindo países economicamente e politicamente relacionados, e com desenvolvimento social e económico comparável". Em outras palavras, o livre comércio só é possível entre sistemas socioprodutivos dotados de estruturas similares. É por isso que "a liberalização total do comércio a nível internacional, o objetivo declarado da OMC, deve ser considerada simultaneamente irrealizável, danosa e indesejável".
No que concerne o comércio internacional, a ideologia do livre comércio também está baseada na teoria das "vantagens comparativas" enunciada por David Ricardo. Essa teoria, segundo a qual cada país tem um interesse em se especializar na produção daqueles bens nos quais ele é mais competitivo, está baseada na ideia implícita de que as economias são definidas por retornos constantes em escala, o que não corresponde à realidade. Um país extremamente especializado e fortemente focado em exportações, em realidade, logo se encontrará em uma posição na qual ele é incapaz de satisfazer sua demanda doméstica, e se torna dependente de taxas de câmbio flutuante que ele não controla. Abandonando os sectores produtivos nos quais ele é considerado menos competitivo, ele também abandona uma competência, um "recurso intangível", o que impedirá o desenvolvimento futuro de toda sua economia.
A globalização, que inflamou a ascensão de países emergentes (China, Índia, Brasil, etc.), que temos visto desde 2000, combinou três factores: a redução progressiva de barreiras alfandegárias, a desregulação de mercados financeiros e avanços tecnológicos em comunicação e transporte. A extensão do livre comércio tem andado de mãos dadas com a globalização, favorecendo a livre circulação de trabalho, bens e capital. Isso facilitou a externalização da indústria para países emergentes com pouca competência tecnológica, mas salários extremamente baixos, bem como exportações maciças de bens baratos originados em países que, como a China, essencialmente baseiam seu crescimento em demanda externa, e apoiam suas exportações mantendo suas moedas desvalorizadas. Tais países tem reservas virtualmente ilimitadas de mão-de-obra a sua disposição, com salários 30 a 80 vezes menores que os de países ocidentais. Estes salários extremamente baixos são, é claro, uma "vantagem comparativa" para países em desenvolvimento, mas constituem competição injusta para aqueles que sofrem com o resultado.
A globalização permitiu que a burguesia e as camadas governantes locais desterritorializassem a produção na esperança de se livrarem das molduras limitadoras de nações e países, transplantando uma parte crescente dessa produção para regiões do planeta que são as menos conscientes em coisas como salários, impostos, segurança social e protecção ambiental. Esse desenvolvimento resulta em custos sociais crescentes. O livre comércio, na verdade, rompe o equilíbrio entre produção e consumo. Ao colocar países de níveis económicos completamente diferentes e com estruturas sociais diferentes em competição e em pé de igualdade, ele cria condições de dumping e distorções sociais insuportáveis. Ele leva as empresas a considerarem seus assalariados como nada além de um custo e, reduzindo seus salários, os empurra para uma competição brutal e inumana.
Os processos de globalização e desregulação iniciados nos anos 80, que atingiram seu ápice em meados dos anos 90, não só cavaram uma vala ainda mais profunda entre o sistema financeiro e a economia real. Eles fizeram com que a mais-valia da produção fosse cada vez mais alocada aos accionistas e proprietários do capital, enquanto os assalariados recebem cada vez menos. Ao expor as forças de trabalho dos países desenvolvidos a competição com trabalhadores subempregados de economias emergentes, os proprietários do capital conseguiram reduzir salários, esquecendo que trabalhadores também são consumidores.
Neste sentido, a globalização de facto marcou o fim do sistema fordista no qual era em interesse do capital aumentar cada vez mais a remuneração dos assalariados de modo a maximizar sua capacidade de consumo. O aumento da produção e do consumo, assim, caminhavam juntos. Esse "círculo virtuoso" foi rompido no momento em que, para satisfazer as demandas do livre comércio, foi necessário reduzir salários com o único objectivo de permanecer "competitivo" em relação a países em que bens similares podem ser produzidos, mas com salários bem menores. Cada vez mais sujeitos à pressão de accionistas (accionistas demandando retornos máximos dos investimentos, o que implica em redundâncias, redução salarial, externalização, etc), os assalariados tem tido que aceitar condições laborais cada vez piores para que possam manter seus empregos.
A deflação de salários levou a um empobrecimento relativo dos trabalhadores e da classe média, e assim a um enfraquecimento relativo da demanda doméstica. Enquanto a maioria dos governos engatou "reformas", as pessoas afectadas estão bem conscientes de que essas reformas consistiram essencialmente em fazê-los trabalhar mais e ganhar menos.
O principal resultado da expansão do livre comércio, além dos benefícios marginais imediatos que possam ter resultado disso (economias de escala, alocação mais eficiente de certos factores de produção, etc.), tem sido, assim, taxas de crescimento decrescentes associadas a um forte crescimento da desigualdade económica em todos os países. A única maneira de compensar pelo crescimento decrescente resultante da deflação salarial, da falta de segurança social e da consequente redução em demanda interna tem sido por meio de empréstimos. Quando salários ficam estagnados e trabalhadores recebem pouco, a demanda só pode crescer por meio de empréstimos e crédito. Ameaçados pelo empobrecimento, os assalariados se endividam cada vez mais para conseguir manter seu padrão de vida, mesmo que suas rendas reais diminuam. Quando eles hajam alcançado um certo patamar, eles se tornam incapazes de pagar suas dívidas, e todo o sistema corre o risco de colapso.
Emmanuel Todd muito correctamente observa que os efeitos negativos do livre comércio estão vindo da base para o topo da sociedade. Nos anos 80, foram os trabalhadores os mais afectados pelas desigualdades crescentes. Então, nos anos 90, o declínio atingiu a classe média, que começou a sofrer com os efeitos do empobrecimento e a consequente perda de posição social. Hoje, os lucros do livre comércio beneficiam apenas o 1% mais rico, que se torna cada vez mais rico, enquanto as diferenças salariais se apliam e a massa de assalariados se torna cada vez mais pobre. "A adesão das elites ao livre comércio", diz Emmanuel Todd, "a partir de então faz com que a sociedade como um todo sofra".
Os grupos mais ameaçados não são mais os menos qualificados, como no passado, mas aqueles cujos empregos são os mais fáceis de externalizar para outros países. Os campeões do livre comércio não dão a mínima para isso, a externalização sendo justificada a seus olhos simplesmente por aumentar a competitividade, e assim permitir aos proprietários do capital adquirir uma parcela ainda maior da riqueza produzida (É o mesmo argumento que foi usado para justificar o trabalho infantil no século XIX). "Eu tenho orgulho de ser um chefe que externaliza", declarou recentemente Guillaume Sarkozy, presidente da Union des Industries Textiles e irmão de sabemos-quem.
Contrariamente à opinião geralmente mantida, as políticas predatórias de países emergentes não só tiveram um efeito devastador sobre as economias de países desenvolvidos, mas também desestabilizaram os países do Terceiro Mundo. Países em desenvolvimento de facto ganharam pouco com as regras da OMC. "Contrariamente ao que muitas vezes se diz", escreve Jacques Sapir, "o livre comércio não tem sido um factor positivo no desenvolvimento dos países mais pobres, e seu efeito na redução da pobreza tem sido muito super-estimado, isso quando não tem sido produto de erros de cálculo". O argumento segundo o qual os desequilíbrios que se notam hoje beneficiam, mais ou menos, as populações de países menos desenvolvidos é, assim, contestável, já que as desigualdades económicas entre países continua a aumentar. Na verdade, os ganhos alcançados nos países emergentes serve acima de tudo para enriquecer um pequeno segmento governante da sociedade cujas fortunas literalmente explodiram no curso dos últimos 10 anos.
O risco hoje é de uma espiral surgindo de um aumento dramático no desemprego e uma redução geral da renda, mas também de um forte declínio em produção industrial nos países desenvolvidos. Já em 1999, Maurice Allais, em seu livro La Crise Mondiale d'Aujourd'hui, previu o "colapso geral" de uma "economia internacional baseada inteiramente em uma pirâmide de dívidas". Nós estamos nos aproximando desse ponto.
Os mais determinados defensores do livre comércio são encontrados na Comissão Europeia, no coração de corporações multinacionais, no Banco Mundial e no FMI.
A doutrina oficial da União Europeia é aceitar o desaparecimento de um certo número de indústrias com uso intensivo de mão-de-obra para se concentrar em indústrias de alto valor agregado, mas que empregam poucas pessoas. Sob essas condições, os empregos criados em sectores de inovação claramente não podem compensar pelos empregos perdidos nos sectores abandonados.
Não é surpreendente, então, que sua indústria desaparece a um ritmo constante e que suas classes médias afundam na pobreza.
Emmanuel Todd considera fácil mostrar que o verdadeiro obstáculo para o proteccionismo se encontra em uma mentalidade ideológica que pode ser descrita como libertária-liberal: narcisismo, mau individualismo, obsessão com dinheiro, e desprezo gritante pelas pessoas. "Para mim", ele declara", o ultra-individualismo não é uma adesão primordial à economia de mercado, à rejeição de todas as barreiras alfandegárias; é uma adesão à ideia do indivíduo como monarca absoluto, à ideia de que é proibido proibir...
O grande factor negativo é essa atomização, essa narcisificação dos comportamentos, esse preconceito contra a acção colectiva nativa. Mas esse mau individualismo é, na verdade, um indivíduo-universalismo, e o universalismo também está em consonância com o livre comércio na medida em que é classificado sob a ideia de "um mundo sem fronteiras", onde nações serão inevitavelmente "suplantadas". Todd também nota que, "A nível internacional, o universalismo e o
pseudo-anti-racismo estão directamente relacionados à dominação do livre comércio. A ideia de abertura, de superar todas as diferenças, leva a isso".
-Alain de Benoist